segunda-feira, 31 de março de 2008

A Cândidinha - armadora e cangalheira





Solteira. Não tinha filhos. Seria uma mulher, aí, entre os 40 e os 50 anos, quando dei conta dela, era eu miúdo, antes mesmo de entrar para a escola. Sempre a vi, assim, na minha aldeia, até ser homem.

Lembro que o seu cabelo, negro e liso, lhe escorria como cortina escura, pelos ombros, desde uma risca, bem ao meio, lá da cabeça.
Magra, alta, um rosto oval, de tez morena. Os lábios, sempre pintados de vermelho vivo. Um sorriso aberto e fácil. Olhos negros, a iluminar-lhe um bem desenhado nariz adunco.

Vestia com decotes reforçados, de preferência, em vestidos compridos, aos godés, muito vistosos.
Usava chinelos ou sapatos de tacão , mais alto do que o de toda a gente.

Caminhava com graça e sabia muito bem como cativar todo o mundo. Sobretudo a miudagem, travessa e atrevida, que passava frente à sua casa. A caminho da escola ou da doutrina.
Uma casa alta, de telhado em duas abas, rendilhadas, pegada à barbearia do Sr. Reinaldo.

Parecia que a sua arte principal fora a costura. Mas a que a tornava mais presente e familiar, em toda a parte, eram duas outras actividades que exercia, com mestria.

Comecei a reparar nela, exactamente, pelo facto de a encontrar sempre, muito envolvida nos enterros das crianças - tão frequentes eram, naqueles anos de cinquenta...tempos de Salazar!...de sete ou oito filhos que nasciam por família, vingavam três ou quatro - e também nos enterros de gente grande.

É que, a todos, eu e os miúdos da minha idade, nos cumpria acompanhar os funerais da freguesia, a troco de cinco ou dez tostões, envergando opas brancas, vermelhas ou amarelas, conforme o nosso tamanho e a bandeira das confrarias que eram contratadas para o cortejo fúnebre, desde a morada do defunto até ao cemitério de Pedra Maria.

Era ela quem, primorosamente, se encarregava de todas essas tarefas pouco simpáticas. E eram muitas:

- A encomenda da urna apropriada. Pintada de esmalte branco, para as crianças, prós anjinhos, como se dizia. Em madeira de carvalho, mogno ou de pinho. Reluzente e envernizada, para os adultos; os adornos ricos, exteriores em ferraria dourada ou prateada; o crucifixo cravado sobre a tampa, bem com o revestimento interno da urna, em cetim, onde seguia deitado o irmão defunto.
- A encomenda de serviços, junto do sr. abade ou da confraria, das irmandades que haveriam de formar o séquito, mais ou menos rico, conforme as posses da família enlutada e, até,
- toda essa história complicada de participar o óbito aos registos, como era de lei...

Nesses momentos, a Cândidinha aparecia de luto rigoroso, como se fizesse parte da família pesarosa.
Desembaraçada e elegante, no seu vestido comprido e preto, uma mantilha em renda negra, sobre um rosto, sereno e triste. Por vezes, de olhos marejados, quando era d'alguém, próximo ou do seu tempo, que se tratava.

Acabada toda aquela sequência de rituais, tantas vezes repetidos, mas sempre revestidos de religiosa dignidade, a vida retomava o seu curso e prosseguia como antes.

Lá vinha ela, livre e disponível, como uma princesa, costeira acima, guarda-sol garrido, aberto, se era verão, uma graça aqui, outra a seguir, à amiga ou ao amigo por quem passasse.

Não ficava por aqui a azáfama daquela senhora.

Chegava o tempo das romarias. Desde Junho até Setembro. Por todo o lado havia festas, com muitos foguetes, bandas de música e muitos andores nas procissões.
Aí entrava a criatividade e vas mãos de fada da Cândidinha.

De toda a parte, a chamavam para engalanar, como só ela era capaz, de vestes e enfeites multicolores, desde os mais delicados aos mais garridos, conforme o santo ou a Senhora que ia lá no alto do andor, bem atestado de flores.

A mim, não mais esqueço, a festa que ela me fazia, era eu garoto, quando me via. Vinha a festa do São João. Que esmolona ela me dava para o meu "sãojoãozinho", na cascata em musgo que eu mesmo fazia, pegada ao muro, rente à estrada, ao pé de casa...

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Andava eu na guerra d'África, anos sessenta...


Ainda hoje, não sei quem foi que enfeitou o seu caixão!...Oxalá tenha sido do mesmo jeito que ela fazia...
A Cândidinha que Deus lá tem!

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