quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Foi há uns cinquenta e tais...

FOI HÁ UNS CINQUENTA E TAIS...





Foi no dia de hoje, há cinquenta e tal anos que morreu a minha Mãe. Tinha eu uns treze para catorze anos. Os sinos tocaram como tocavam tantas vezes para funerais que eu via passar à minha porta.
O cemitério fica ali para cima uns trezentos metros. Desta vez foi a minha Mãe que partiu para sempre. Com flores, com muita gente a acompanhá-la. Ela era padeira, distribuidora de pão pelas manhãs e nisso, corria grande parte da freguesia todos os dias, Verão e Inverno e, ainda por cima era mulher do alfaiate da freguesia.

Nunca mais ouvi a sua voz, que se ouvia pouco, mesmo quando era viva. Ela ouvia mais do que falava. Relembro o seu carinho de me vir aquecer os lençóis da cama, no pino do Inverno, com o ferro de brunir, da oficina de alfaiate, antes mesmo de me ir deitar. Se o não fizesse, passaria um quarto de hora, enregelado, a aquecer. Assim, era só fechar os olhos e voar nas asas do sonho e do sono despreocupadamente, até ao outro dia para a brincadeira.

Que me diria que passadas estas cinco dezenas de anos, eu estaria aqui, a relembrá-la, com saudade, perto de Aveiro, já com mais uns vinte e sete anos a mais dos que Ela tinha quando foi a descansar...

Aradas, 27 de Novembro de 2008

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes

Foi há uns cinquenta e tais...

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

UM CONTO

A CABRINHA BRANCA



1


Na madrugada fria de uma noite de finais de Fevereiro, depois de grande alvoroço, na casa do sr. José das Cabras, a Nana, assim, se chamava a mais velha cabra preta do rebanho, deu à luz uma linda cabrinha, toda branca.
Farrapinho de algodão em rama, cambaleante nas pernitas trôpegas, como uma tontinha, olhitos esbugalhados olhava em redor, soltando os seus primeiros ”mé-mé”…
Seguia-a o olhar manso e regalado da cansada mãe Nana, ainda deitada sobre a cama de feno fresco, feita de lavado pelo dono.
Finalmente, por instinto, deu com as tetas cheias da mãe e adormeceu a chuchar o leite morno que saía, em sôfregos tragos.

2




Assim, dormiu sossegada até manhãzinha, sem dar conta das lambidelas da Nana, que deixaram a filhota, limpinha e asseada.
Ela sabia que muitas visitas vinham na manhã seguinte. A surpresa seria bem maior, quando vissem a branquinha dos seus sonhos, nunca, antes, satisfeitos. Pretas, castanhas e malhadas, de todos os feitios, tantas, já tinham crescido e seguido à sua vida. Por isso, redobrada era a sua felicidade.

3


Os primeiros dias foram passados em recolhimento, no aconchegado curral; cá fora fazia vento frio e a chuva ainda era muito frequente. Havia que ter cuidado.
O sr. Zé, que não via outra coisa no mundo, além do seu rebanho, às horas certas, lá vinha com a erva fresca, doce e saborosa. No bebedouro, nunca faltava água limpinha do poço.

4


Chegou o final de Março e o sol começou a encher de luz o curral, através das frestas. Até a mãe Nana sentia saudade de passear pela encosta do monte, já verdejante e florido, em volta da casa do bondoso pastor, isolada , quase lá no alto.
Sempre sob o seu olhar atento e seguindo as insistentes recomendações que ele lhes fazia.

- Nunca te afastes muito com os teus filhotes. Olha que podem vir os lobos e eles não perdoam…

A mãe Nana estava bem ciente e por sua vez não se cansava de o dizer às suas crias.



5

Finalmente, chegou o dia de a cabrinha branca acompanhar a mãe e as irmãs mais velhas.
Subiram um pouco a encosta, afastando-se uma centena de metros da casa do dono.
A cabrinha branca olhou para o céu. Olhou em redor e ao longe. Que bonito!… emocionada, apenas, baliu…
A mãe Nana olhava-a embevecida; compreendeu a surpresa e o encanto que ia na cabecita branca de orelhas arrebitadas.
Intrigada, esta via a mãe a debicar as pontas tenras das ervas que cobriam o monte. Provou. Achou-as azedas e frias comparadas com o leite morninho que saía das tetas da mãe.
Adorava saltitar, sobre os arbustos pequenos, senti-los raspar na barriguita e correr atrás dos bichinhos saltitões que se lhes escapavam, mal ela se aproximava.

Passaritos chilreavam, esvoaçavam, de moita em moita, rasteirinhos ao chão revestido de vegetação multicolor.
O sol aquecia, cada vez mais à medida que subia no céu e as sombrinhas tornavam-se deliciosas para repousar.
Olhava ao longe. Montanhas muito altas e escarpadas e, lá bem em cima, ainda havia mantos largos de brancura. É neve. Dizia-lhe a mãe Nana. Neve? … O que será?… tão bonita e reluzente como as nuvens que passeiam no céu azul.
Como gostava de ir lá mesmo. Não!? – É perigoso. Não podemos sair daqui. Há lobos por esses montes fora que nos fazem mal. A cabrinha acreditava, mas os olhitos eram fascinados…

6


Os dias foram passando. Cada vez se sentia mais segura. À noitinha, quando o sol se começava a esconder, lá longe, atrás dos montes brancos, dois assobios do Sr. José eram o sinal de regresso a casa.
Desciam a ladeira, vagarosamente. Uma debicada aqui, outra acolá. A cabrinha já imitava a mãe, sem achar azedas as ervinhas tenras. No céu, apareciam umas luzinhas brilhantes. Muitas e muito mais pequenas que o sol. Outra bola branca de prata subia do outro lado do céu escuro. É a lua, ensinava-lhe a mãe Nana…As luzitas eram cada vez mais e faziam figuras no céu…
Recolhiam ao curral, felizes e de barriga cheia. Lá em baixo, ouvia-se os ladrares de cães da aldeia. Vinha o sono e o sonho bailava-lhe na cabecita. Via-se subir a montanha da neve, mas logo acordava aterrorizada. Aconchegava-se à barriga quentinha da mãe.
A noite passou. Os raios de sol começaravam a entrar pelas frestas do curral, feito de tábuas de pinheiro.
Não tardava muito que o Sr. José aparecesse, assobiando de contente. Novo dia ia começar. Abria o ferrolho de pau e as portas abriam-se de par em par; monte acima, lá seguiam as cinco, rodopiando, em corridas tontas à volta da mãe Nana.



Assim, se foram passando os dias, uns atrás dos outros. A felicidade não podia ser maior.
Agora, já se sentia crescida e capaz de ir mais longe, embora à vista da Nana.
A umas centenas de metros, do lado donde nascia o sol, havia uma casa idêntica à do Sr. José. Se calhar, também haverá lá outras cabrinhas como ela. E, se eu fosse lá ver?. Numa corrida, a mãe Nana, nem dá por isso. Há muito que a mãe está à conversa com uma velha amiga que por ali passou. É boa altura. Ainda não decidira e já se via a correr, a toda a brida, em direcção à casita. Era verdade. Uma casa de pastor. Eram p´raí umas 20 ou 30 ao todo. Um canito amarelado acompanhava o pastor com seu cajado e tomava conta delas. Pretas, castanhas e malhadas. Nenhuma era branca como ela.
De imediato, voltou a correr, antes que a mãe desse pela sua falta. Pensou que ninguém daquele rebanho a tivesse visto, mas enganou-se.
Tal como a cabrinha branca, naquele rebanho, havia um cabritinho preto, todo preto. Muito sonhador.
Este, volta e meia, também ficava só, extasiado com o deslumbramento da natureza verde que o envolvia, em vez de se colar, focinhito ao chão, à procura de uma e mais outra erva verde. Foi numa dessa contemplações que entreviu, talvez movido por instinto, ou qualquer outra força, atrás de um tufo de giestas amareladas baloiçantes ao vento, a cabrinha branca a espreitar.
Foi um instante, apenas. Surpreendido, viu-a afastar-se, monte acima, em corrida veloz, até à casa do vizinho.

-Tenho que voltar a vê-la, pensou, de si para si. E se o pensou, assim o fez, contra tudo e todos…levado por força irresistível.
Uns minutos, depois, estava ele com a cabrinha branca à vista… encantado…só falta ela dar comigo…seguia-a sem pestanejar um só momento, todos os passos…
Fosse pelo que fosse, algo a fez poisar nele o seu olhar surpreso.
Milagre!… ela vem aí…
Fitaram-se e, num instante, os coraçõezitos a rebentar de emoção, trocaram-se e encheram-se do encanto que cada um sentia pelo outro…um sonho os transportou à leveza da eternidade…
A partir de então, os encontros, em segredo, passaram a tornar-se a maior razão de cada dia…Pouco falavam. Ao longe, lá estavam as altas montanhas cobertas de um manto de neve, tocando o céu…E se fôssemos vê-las ao pé?…aos dois, nada nos pode acontecer…


8



O sonho tornou-se irresistível. Por isso, sem se importarem com as insistências das mães ou com o que pudesse acontecer, puseram-se a caminho.
A manhã ia a meio quando deixaram o esconderijo, onde vinham a encontrar-se.
-Quantos já fizeram o mesmo, lá no meu rebanho, dizia o amigo pretinho, todo preto, para animar a branquinha.
Comida não vai faltar, com certeza. Olha como estão verdes os montes até lá. – acrescentou.
Não demorou muito que já estavam a dobrar a vertente da encosta.

A mãe Nana só quando ouviu os dois assobios do Sr. José e depois de aguardar uns momentos, é que se apercebeu da falta da branquinha. Não queria acreditar. Balia. Balia, insistentemente, mas nada… o coração começou a bater cada vez mais apressado. Algo lhe segredava que a branquinha fugira… e não estava enganada. Aflição. O Sr. Zé não tardou a chegar.
-Desapareceu a branquinha…exclamou soluçante de choro…O Sr. Zé assobiou… assobiou, repetidamente. Chamou o canito e subiu ao cume da ladeira. De novo, fez ecoar insistentes assobios, pelo largo vale à sua frente.

9

Inutilmente. A noite caía depressa e com ela o negrume tomava-lhe de tristeza o coração, pelo que pudesse ter sucedido. Vestígios, nenhuns. Amanhã vamos fazer uma batida até onde for possível.

10
Naquela noite, ninguém dormiu no casal. Qualquer ruído, fazia soerguer a mãe Nana, na esperança de um milagre…de novo, o silêncio da noite. Só os grilos zumbiam.
Tudo lhe passou pela cabeça. Não parava de magicar à procura de uma razão. A branquinha era a mais irreverente de todas, mas muito agarrada à família. Alguém a levou… tão linda!…De repente, veio-lhe à ideia aquela estranha curiosidade da branquinha em conhecer a neve no cimo das montanhas, além.
Ficou convencida de que encontrara a razão do acontecido...O instinto de mãe…Vou dizer ao Sr. Zé, mal ele chegue de manhã.

- Ah! Não é provável. Ela não se atrevia a tanto.
- Olhe que foi, teimava a mãe Nana. Ela é muito aventureira.
Duas horas de caminho, também não é nada do outro mundo. O boby estava ao pé, olhos cravados, ora na Nana ora no dono, à espera de ordens.

11

- Vamos lá, boby.
De cajado na mão, bornal ao ombro, com broa queijo e água, puseram-se a caminho. Era manhã, cedo.
O boby seguia à frente, de orelhas arrebitadas e o rabo a dar a dar, farejando, seguro de que seguia o trilho por onde passara a branquinha; conhecia-a tão bem!… parava de vez em quando até ser alcançado pelo dono, ofegante.
Este estava seguro de que seguiam no rumo certo.
- O boby não falha.
Entretanto os fugitivos já tinham descido toda a vertente oposta, com dificuldade. A vegetação era cerrada e as veredas ficavam irreconhecíveis. Havia que romper, tendo como objectivo sempre a brancura da neve, lá no cimo.
No fundo do vale corria um riacho de água abundante e intransponível, a pé. Procurando ao longo da margem, um local onde aquele fosse mais estreito, subiram a montante, acompanhando tanto quanto possível, a borda densa de arbustos.
Já tinham andado imenso. O cansaço já se fazia sentir.O dia começava a dar sinal de atingir o seu fim. O sol já se escondera atrás dos montes cobertos de neve. Seria melhor arranjar um sítio abrigado para passar a noite. Não era difícil. Os tufos de vegetação abundavam.
O Sr. José deambulou, em vão, pela encosta, a tarde inteira conduzido pelo faro do canito preocupado. Aos assobios repetidos do pastor, apenas respondia o habitual silêncio da montanha e o eco que se perdia nas largas vertentes. O desânimo e o abeirar da noite fê-los regressar a casa.

A mãe Nana aguardava-os ansiosa.
A esperança que sentiu durante todo o dia, esgotou-se, num repente, quando viu o Sr. Zé e o boby descerem sós.
- Amanhã voltaremos. Havemos de os encontrar…- dizia-lhe o sr. José, tentando consolá-la.

12

Três bolas grandes de granito tosco e cobertas de musgo teriam resvalado, talvez, há muitos, muitos anos, pela encosta abaixo e, ali ficaram encostadas, amparando-se mutuamente, num baixio do terreno, antes de atingirem o ribeiro. Formavam um aconchegado esconderijo para uem por ali passasse. De gente não havia qualquer sinal. Só eles, o formigueiro de luzeiros no céu estrelado, uma grande bola de prata a erguer-se muito devagarinho, por cima das serras cobertas pelo manto da neve que reluzia, até se perder no escuro das encostas adormecidas. Um coro, orquestral, em vagas de zumbidos das cigarras e dos grilos, salpicadas, aqui e ali, pelos “tip-top” soturnos das poupas e dos mochos, à mistura com outros silvos desconhecidos e estranhos…
Melhor lugar não poderia ter encontrado o casalito aventureiro, que já não conseguia esconder, um ao outro, os justificados temores que os transia.
A noite iria ser muito longa para ambos já deitados no chão fofo, frente a frente, enlaçados em terno abraço.

Qualquer ruído estranho, para além do gorgolejar das águas do riacho que corria incessante, ali ao pé, os fazia estremecer. As orelhitas arrebitadas e o bater apressado dos coraçãozitos só voltavam a serenar, depois de uma longa espera, até que só o seu brando arfar fosse ouvido.

Uma onda de saudade e de leve remorso pelos cuidados em que a mãe Nana estaria a passar, lá em casa do sr. José, fez rebentar nos olhos da branquinha uma torrente de lágrimas quentes, logo seguida de choro convulsivo.
Só com um esforço ingente de ternura, o cabritinho preto conseguiu serená-la até cair adormecida…

13

Mas a felicidade que vinha sentindo em toda aquela aventura, inocente, fê-la sonhar...
A viagem de sonho continuou na cabecita da Branquinha adormecida.
Fascinada pela longa toalha de neve branca cada vez mais perto, subia as veredas naturais da encosta, em correrias marotas, à frente do companheiro, ficando à sua espera, arfando de doce cansaço e júbilo.

O fresco banho que tomaram, ambos, em alegre brincadeira, no açude natural do ribeiro dera-lhe mais força e os cabelos escorridos já quase estavam secos pelo sol que os ia acompanhando.

Já iam a meio da encosta e podiam ver o longo caminho que tinham feito nos montes do lado de lá, donde vinham e, atrás dos quais, a Mãe Nana ficara com os irmãos e o bom sr. José. Eram bonitos, mas só se via o manto verde dos arbustos e mato rasteiro que, agora, de tão macio, lhes parecia inofensivo, cobertos pelo azul do céu, sem fim.
Tudo estava a correr como imaginara. Mais um pouco e estaria sobre aquela toalha de neve, como dizia a Mãe Nana. Ela e o seu amado companheiro de aventura. Lobos?…Nenhum. Era só para nos meter medo…está bem. Não era para nosso mal…pensava a cabrinha no seu doce enleio. Maravilha. Aqui e ali, já se via sulcos de água a escorrer do cimo da montanha, mas esta demorava a chegar.




14
Só quando o sol batia a pino e lhes apetecia esconder debaixo dos saborosos arbustos é que comecaram a pisar as franjas do tal manto de neve que ia engrossando, enterrando-se nele as 4 patitas delgadas. Subiram. Subiram até ao cimo, quase tocando nas núvens brancas do céu. Sozinhos. Os dois, dançando de alegria, rodopiavam, em loucas corridas, até se estatelarem abracados, naquele chão almofadado de leveza e frescura paradisíaca…
Era o triunfo de um sonho atrevido. Lobos?…Nem pensar.

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Eis senão quando, a Branquinha vê, ao longe, um vulto a mexer. Como se fosse um boby em ponto grande. O boby não pode ser. É grande demais. Vem avançando em sua direcção, deixando, atrás, trilhos negros na neve branca…O coraçãozito começa a bater-lhe no peito, com força cada vez maior…olha em redor e já não vê o companheiro. O pânico apodera-se dela e começa a correr, monte abaixo. Cai, mas não pára. O seu corpito desce vertiginosamente, sobre o precipício…Vai pelo ar… alucinada, como se fosse a voar…Grita pela Nana, pelo sr. José, pelo companheiro amado e ninguém lhe vale…O chão pedregoso aproxima-se como um raio de luz…É o fim.
Num relance, reconhece que a mãe Nana tinha razão e arrepende-se…mas, ainda, com uma réstea de esperança. Não pode ser…
Que pesadelo!!!….

16

Abre os olhitos e tonta de alegria, vê-se agarrada, com todas as forças, ao seu companheiro pretinho, também aflito.

Um canito parecido com o boby, ladra raivoso, salta em redor e quer morder o companheiro, estranho…
Logo a seguir aparece a figura calma e bondosa do sr. José, com um forte cajado na mão.
Medo, vergonha, alegria, tudo se mistura na cabecita confusa da branquinha.
Confiante, levanta-se e corre para um forte abraço do seu pastor…
Só a largou quando a Mãe Nana, chamada pelo boby, escorrendo lágrimas de alegria lhe estendeu os seus braços, em veloz corrida desde o casebre até ao cimo do monte…
A Branquinha, a Mãe Nana, os seus filhotes e o boby nunca mais se separaram da casa do bom sr. José das Cabras

19 de Agosto de 1999

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Pedras Preciosas


Tive um sonho. Eu era miúdo. Dei comigo, em calções, sentado na valeta ao pé de minha casa. Era Verão.
Não havia perigo. Os carros eram raros. Lá passava um, de hora a hora.

Pela tardinha, gostava de brincar, ali, sozinho, na valeta da estrada, ao pé de minha casa. As valetas eram regos toscos, um de cada lado da estrada, ainda era em terra batida com cascalho.

Depois das chuvas de Inverno, aquelas valetas formavam uma espécie de ribeira seca. Com folhas mortas, de plátano e de videiras, muito arrumadas, em tapete, ao longo das margens barrentas.

De vez em quando o leito espraiava-se em açudes de areia, muito lavada e fina, lavrada por sulcos e ravinas, em miniatura, de ramagens caprichosas.

Só não havia conchas, como na Póvoa de Varzim. Eu gostava que houvesse conchas. Seria sinal de que vivia ao pé do mar. Tanto queria.

Minha terra ficava longe do mar. Entre montes e serras altas. Com neve branca no Inverno.Com muitas árvores. Muitos campos, povoados de muito aves buliçosas. Ora umas, ora outras. Não eram sempre as mesmas. Como eu e os meus companheiros de escola. Éramos sempre os mesmos.

E havia muitos penedos de granito. Eram bolas gigantescas. Espalhadas pelas encostas. O seu tamanho deixava-nos de boca aberta.

Volta e meia, ouvia-se estrondos ao longe. Ribombavam como trovões. De meter medo.
Meu pai dizia:
- São os pedreiros, nas pedreiras dos Perdidos.

As pedreiras ficavam a léguas de distância. Frequentemente, passavam carros de bois, com aqueles eixos em toro grosso de madeira, a chiarem, como cães danados. Tanta e tamanha era a carga.
E o meu pai dizia:

- Estas pedras vêm das pedreiras dos Perdidos.

Eu ouvia-o. Depois, cá com os meus botões, ficava a pensar no resto:

Nas casas que eu via serem erguidas, em fiadas de blocos de pedra talhada, habilidosamente encastelados, em fiadas; nos esteios delgados que seguravam ao alto, as ramadas e os bardos de vinho verde; nas colunas lisinhas e trabalhadas que seguravam os portões das casas apalaçadas.
Enfim. Tudo era feito para durar. Eterno. Com a pedra saída das pedreiras.

Sempre fora assim. Por isso é que havia tanta areia fina pelas valetas. Não era dura. Nem sequer seca a camada que fazia. Podia-se escavá-la, húmida, até achar terra negra e dura, com os dedos da própria mão. Debaixo daquela capa fina, logo apareciam pedacitos, de tamanho variado, matizados e tão macios, pareciam ovos de passarinho.
Eram lindos. Ora baços ou reluzentes, às camadinhas tão perfeitas, de muitas cores. Como berlindes, quando lhes batia o sol.

Ainda bem que, pela estrada, as pessoas grandes, tisnadas de sol e a cabeça consumida, de problemas, passavam indiferentes a tanta riqueza que eu, avaramente, levava para casa, numa saca.
Eram pedras preciosas!...

segunda-feira, 16 de junho de 2008

NATAL DA GRACIOSA




Era um barco,
grande,
a esbordar de contentores.

Partiu de madrugada,
sobre o mar.

Onde vai,
tão alegre,
leva pressa de chegar?

Os meninos da Graciosa,
depois que chegou Dezembro,
mal acordam,
vão espreitar,
se lá vem o barco grande...

Sonharam todo o ano,
com as prendas de Natal.

- Deus lhe dê boa viagem,
ele há-de lá chegar!...


Traz comida,
roupa nova,
brinquedos,
tantos sonhos cor de rosa,
p'rás vitrinas de Natal.

Ó presságio tenebroso!

É tão estreita
e pedregosa,
tanta rocha e rochedo,
até as ondas alterosas
têm medo,
Bem à porta
da Graciosa!...

- Lá vem ao longe
o barco grande,
vem cansado,
mas feliz,
a esbordar de contentores!...


Se ele soubesse
a nuvem negra de tristeza,
que vai cair
sobre os meninos de Graciosa!...

Aquelas rochas cegas
e rochedos
nunca o deixaram lá chegar!...

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Não há poesia nos ares






Ó carros loucos e fumarentos,
em desatino,
pelas estradas;

Ó cigarros roucos
que amortalhais
os lábios talhados
para a sorte de amar;

Ó atrevidas chaminés,
pelo céu acima,
que aspergis veneno
pelos prados e pelas boninas;

Ó esgotos negros,
pestilentos
das cloacas das oficinas
que vazais mixórdia,
sem vergonha,
nos rios puros
que vão para o mar;

Ó naves traiçoeiras
que voais escondidas,
para lá das nuvens,
bentas,
e devorais as nascentes
cristalinas
das brisas meigas;

Ó centrais atómicas,
alapadas
nas tocas do deserto
ou ao pé do ventre
das cidades;

Ó obscuros caldeirões de química,
tapados pela hipocrisia
do progresso,
sem limite,
onde o ignorante
pensando que é sábio,
extermina, cego,
a sua vida e a do futuro;

Ó vinte séculos de existência
dum mundo farto,
de beleza e de riqueza,
navegando louco,
pelas mãos do homem;

Ó mar revolto,
sem maresia,
sufocado,
sem poesia!...

sexta-feira, 30 de maio de 2008

ATRIUM DO SALDANHA




Abaixo do Rés-do-Chão,
ali ao meio,
mora um piano.
É preto.
Tem cauda longa.
As mais das horas
ninguém lhe toca.

Um turbilhão de gente
por ele passa
e o ultrapassa,
indiferente.
Vai tão alheia,
Tão apressada.

Ninguém o olha
e se o olha
é pelo rabo d'olho.

Como a um leproso,
a um mendigo,
sempre calado.

Do meio dela
sai alguém.
De meia idade.
Um samaritano.
Bem aprumado.

Traz uma pasta
e vai para ele.

Ergue-lhe a tampa.
Tira o casaco.
Ajeita-lhe o banco.
Rebusca nas pautas.
Limpa-lhe o pó.


Reveste o casaco.
Rebaixa-lhe a tampa.
Volta-lhe as costas
e vai dar uma volta...

E o piano,
mais reluzente,
ali fica calado,
mas indiferente.

Homem da limpeza?
Um samaritano?
Mesmo mendigo
ou leproso escondido?...

Porque não pianista?...

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Pombas sem nome




Voaram cegas,
geladas,
cheias de fome,
das ruas sem nada.

Vagueiam pelo átrio
da gare
de Montparnasse.

Indiferentes às horas,
buscam migalhas,
à vista de todos,
em cima das mesas
e caídas no chão.


Contentes, nervosas,
correm as gentes,
de rosto, sem nome,
e, ao alto,
saltitam as letras,
a cada comboio
que chega
ou que parte.

Pelos bancos corridos,
sem costas,
de costas voltadas,
dormitam olhos cansados,
à espera das horas,
que tardam.


Paris,Montparnasse, em Dezembro.2007
Joaquim Luís Mendes Gomes

segunda-feira, 31 de março de 2008

A Cândidinha - armadora e cangalheira





Solteira. Não tinha filhos. Seria uma mulher, aí, entre os 40 e os 50 anos, quando dei conta dela, era eu miúdo, antes mesmo de entrar para a escola. Sempre a vi, assim, na minha aldeia, até ser homem.

Lembro que o seu cabelo, negro e liso, lhe escorria como cortina escura, pelos ombros, desde uma risca, bem ao meio, lá da cabeça.
Magra, alta, um rosto oval, de tez morena. Os lábios, sempre pintados de vermelho vivo. Um sorriso aberto e fácil. Olhos negros, a iluminar-lhe um bem desenhado nariz adunco.

Vestia com decotes reforçados, de preferência, em vestidos compridos, aos godés, muito vistosos.
Usava chinelos ou sapatos de tacão , mais alto do que o de toda a gente.

Caminhava com graça e sabia muito bem como cativar todo o mundo. Sobretudo a miudagem, travessa e atrevida, que passava frente à sua casa. A caminho da escola ou da doutrina.
Uma casa alta, de telhado em duas abas, rendilhadas, pegada à barbearia do Sr. Reinaldo.

Parecia que a sua arte principal fora a costura. Mas a que a tornava mais presente e familiar, em toda a parte, eram duas outras actividades que exercia, com mestria.

Comecei a reparar nela, exactamente, pelo facto de a encontrar sempre, muito envolvida nos enterros das crianças - tão frequentes eram, naqueles anos de cinquenta...tempos de Salazar!...de sete ou oito filhos que nasciam por família, vingavam três ou quatro - e também nos enterros de gente grande.

É que, a todos, eu e os miúdos da minha idade, nos cumpria acompanhar os funerais da freguesia, a troco de cinco ou dez tostões, envergando opas brancas, vermelhas ou amarelas, conforme o nosso tamanho e a bandeira das confrarias que eram contratadas para o cortejo fúnebre, desde a morada do defunto até ao cemitério de Pedra Maria.

Era ela quem, primorosamente, se encarregava de todas essas tarefas pouco simpáticas. E eram muitas:

- A encomenda da urna apropriada. Pintada de esmalte branco, para as crianças, prós anjinhos, como se dizia. Em madeira de carvalho, mogno ou de pinho. Reluzente e envernizada, para os adultos; os adornos ricos, exteriores em ferraria dourada ou prateada; o crucifixo cravado sobre a tampa, bem com o revestimento interno da urna, em cetim, onde seguia deitado o irmão defunto.
- A encomenda de serviços, junto do sr. abade ou da confraria, das irmandades que haveriam de formar o séquito, mais ou menos rico, conforme as posses da família enlutada e, até,
- toda essa história complicada de participar o óbito aos registos, como era de lei...

Nesses momentos, a Cândidinha aparecia de luto rigoroso, como se fizesse parte da família pesarosa.
Desembaraçada e elegante, no seu vestido comprido e preto, uma mantilha em renda negra, sobre um rosto, sereno e triste. Por vezes, de olhos marejados, quando era d'alguém, próximo ou do seu tempo, que se tratava.

Acabada toda aquela sequência de rituais, tantas vezes repetidos, mas sempre revestidos de religiosa dignidade, a vida retomava o seu curso e prosseguia como antes.

Lá vinha ela, livre e disponível, como uma princesa, costeira acima, guarda-sol garrido, aberto, se era verão, uma graça aqui, outra a seguir, à amiga ou ao amigo por quem passasse.

Não ficava por aqui a azáfama daquela senhora.

Chegava o tempo das romarias. Desde Junho até Setembro. Por todo o lado havia festas, com muitos foguetes, bandas de música e muitos andores nas procissões.
Aí entrava a criatividade e vas mãos de fada da Cândidinha.

De toda a parte, a chamavam para engalanar, como só ela era capaz, de vestes e enfeites multicolores, desde os mais delicados aos mais garridos, conforme o santo ou a Senhora que ia lá no alto do andor, bem atestado de flores.

A mim, não mais esqueço, a festa que ela me fazia, era eu garoto, quando me via. Vinha a festa do São João. Que esmolona ela me dava para o meu "sãojoãozinho", na cascata em musgo que eu mesmo fazia, pegada ao muro, rente à estrada, ao pé de casa...

.................................................................................

Andava eu na guerra d'África, anos sessenta...


Ainda hoje, não sei quem foi que enfeitou o seu caixão!...Oxalá tenha sido do mesmo jeito que ela fazia...
A Cândidinha que Deus lá tem!

quarta-feira, 26 de março de 2008

Sem preço...De carne e osso



Sinto a fome,
sinto a sede,
sinto o frio
e o calor.

Ora canto,
ora choro,
também durmo.
É possível que
Até ressone!...

Também amo.

Ora oro,
ora adoro,
ora danço,
ora peço.

Também sonho.
Sou criança.

Tenho peito,
tenho lábios,
também beijo,
bebo vinho,
consumo espaço.

Não tenho asas,
nem sou anjo.


Se for preciso,
eu vou a pé,
mesmo descalço.

Não sou de pau,
não sou de cera,
nem sou de aço.

Sou mesmo assim:
de corpo e alma...
de carne e osso.

Não tenho preço!


Almada, 26 de Março de 2008
Joaquim Luís Mendes Gomes

segunda-feira, 17 de março de 2008

A Figueira de Tremoços




A cavalo dum burrico,
tloc!tloc!
tloc!tloc!...
pela ponte,
em pedra,
dum só arco,
sobre o ribeiro,
lá seguia,
sózinho,
o moleiro.

Na boca, seca,
uma beata,
sempre acesa
e na mão,
uma chibata.

Tloc!tloc!
tloc!tloc!...

Mais dois sacos,
escarranchados,
bem cheios
de centeio,
a caminho
do moinho.

Oh que destino!

tloc!tloc!
tloc!tloc!...

Para a frente,
sempre adiante,
a vida inteira,
lá seguia,
submisso e manso,
o burrico,
rio abaixo,
rio acima,
carregado,
milho em grão,
de farinha,
ou de centeio,
mais o dono,
gordo,
às cavalitas,
enfarinhado.

Tloc!tloc!
tloc!tloc!...


Pra perdição do burro,
tão manso,
tão pacato,
por ladeiras,
ao longo das veredas,
entre mantos de giestas,
cresciam longos
apetitosos,
extensos ramos
de tremoços...

Que tenrinhos,
saborosos!
-exclamava o burro,
solitário,
salivando.

Tloc!tloc!
tloc!tloc!...

Mesmo à porta
do moinho,
havia uma figueira,
ramalhuda...
Oh que figos,
tão docinhos,
ela dava!...

Eram o reino
e o regalo
bem guloso
do moleiro,
nas horas mortas
do moinho!...

O burrico
bem o sabia
e também as fadas,
suas amigas,
que, de noite,
ali moravam!...

Só a chibata,
dura,
tão maldita,
não parava,
sobre o dorso
do burrico.

Até sangrava!...

Por causa
da verdura dos tremoços,
desde a ponte,
vereda abaixo,
até bem perto
do moinho.

E as fadas,
sentindo pena
do jerico,
juraram vingança,
ao mafarrico
do moleiro...

- Há-de aprendê-las!

Eis que,
num golpe simples,
de magia,
carregaram a figueira
de tremoços
e a borda da ribeira,
de figos doces,
os mais docinhos!...

E o safado
do moleiro,
pasmado com tanto figo,
não resistiu
à tentação.

Saltou do burro
ali ficou
a tarde inteira!...

O burro,esse,
felizardo
e bem ladino,
correu sózinho,
sem parar,
até à figueira
do moinho,
a abarrotar
vergadinha,
de tremoços...
sem a chibata
do moleiro!

quinta-feira, 13 de março de 2008

Praia Deserta




Só eu e o mar,
ao cair da tarde.

Uma multidão de ondas,
brancas,
em cadeia,
em correria louca,
com fragor,
sempre a chegar.

Uma brisa agreste
de tão forte,
quase magoa,
ressoa fresca,
no meu rosto,
sem dizer
o que anda a preparar.

As gaivotas,
às centenas,
muito quietas,
muito caladas,

sobre a areia rendilhada,
voltam-se
alinhadas,
contra o vento
que não pára de bramir.

Seria a hora
do sol-pôr,
se não fosse
este fragor
de tempestade
a ameaçar.


Para quê...
tanta imponência,
e tamanha solidão?

Eu...estou só.
Não sou nada!

Um céu de cinza,
ao fundo,
pesado e negro.


Tamanha maravilha
Para quem?...
Até estonteia.
Parece não ter dono.

Dá que pensar!...

terça-feira, 11 de março de 2008

Ao cair da tarde......



Ao cair da tarde,
enquanto o sol se apaga,
lentamente,
em bandos,
voam as andorinhas;

descem os rebanhos,
lá dos cumes
das montanhas;

do alto mar,
recolhem os barcos
pescadores,
carregados de sardinhas;

Caem as Trindades
e soam as sirenes,
e, de portas escancaradas,
se escoam,
pelas estradas,
as fábricas
e as oficinas,
nervosamente,
se esvaziam as cidades.

É assim
a vida,
breve,
que vai caindo,
lentamente,
como o sol,
ao cair da tarde...