OS Azeiteiros
Já não existe a casa amarelada de dois
andares onde eu nasci. Hoje, apenas está lá o sítio e o plátano que lhe dava
sombra.
Não era dos meus pais. Era arrendada. Ao
senhor Alvarinho dos Moinhos. Uma bagatela de renda. Aí, uns cinquenta mil
réis, talvez...
Apenas o primeiro andar estava
arrendado. Direito a um bom quintal, com
poço e tanque, nas traseiras.
Subia-se para ele por uma escada de
granito, a partir de um cancelo em ferro forjado baixo, tinha sido encarnado,
em tempos.
Os degraus eram altos e as pedras ainda estavam rugosas.
Contei-os, todos, era eu menino, num trambulhão, sem fim, que me ia mandando
p’rós anjinhos.
Havia um corrimão, também em ferro, a proteger quem subia ou
descia. E fazia jeito, principalmente nas noites de inverno. Não havia
iluminação pública na estrada nacional que lhe passava adiante.
Por isso, de inverno, aquela protecção era muito útil aos
fregueses do meu pai que era alfaiate, quando se iam embora, com o fato novo ao
colo, depois das longas esperas a que já se habituavam, em serões que não
tinham fim.
Por baixo tinha uma garagem a todo o
comprido e a largura do andar que suportava.
Tinham acesso a ela, para um ou outro
arrumo transitório, mas não o direito a usá-la.
Por isso, foi muitas coisas, que me
lembre, para meu regalo, até foi fábrica de pregos.
Como tinha um alçapão fundo ao comprido,
tapado por tabuões enegrecidos de pinho, com escadinhas de acesso, mesmo ao
meio do chão, terá sido oficina de carros.
Não sei de quem era o carro, mas houve um,
grande, que fez as minhas delícias furtivas, horas a fio, às escondidas dos
pais. Enquanto se manteve ali, estacionado. Alguém pediu para o guardar. Tinha
uns grandes faróis cá fora, em cima dos guarda-lamas, pareciam gigantescos
olhos de boi. E uma corneta de borracha, tipo de clister. Nessa não tocava
eu...
Entrava-se subindo um espaçoso degrau em
metal reluzente e depois vinham uns estofos avermelhados de couro com cheiro a
sapateiro.
Um guiador preto, que me esgotavam o
comprimento dos meus braços. Só de joelhos tinha vista lá prá frente.
Sem dar conta, um dia deixei de o
encontrar... lá.
Por muito tempo, fiquei mais pobre e
triste, sem a magia daquele meu castelo de sonho.
Ao lado de nossa casa havia outra. Como
se diz hoje, geminada. Também do mesmo senhorio, e arrendada ao senhor Manel
Cunha que era sapateiro. A oficina ficava na loja. À socapa de meus pais, que
não me deixavam ir para lá, vi-os fazer, de fio a pavio, as botas e sapatos,
desde o corte ao fim.
A mulher, de faca em punho, era quem
talhava e fazia o corte das peças de cabedal e, a seguir, as cosia
desembaraçadamente, na máquina de costura, marca Singer, mais robusta que a do
meu pai.
Eu gostava deles.
Nunca me regatearam um pouco de goma de
farinha triga, com que colavam as solas, para os meus papagaios de jorna. Ou as
tiras de borracha para as minhas fisgas.
De vez em quando, levantava-se para lá
uma trovoada..., de raios e coriscos, entre ele e a mulher. Parecia o fim do
mundo.
Não sabia porquê, mas apercebia-me de
que não havia grande entendimento deles com meus pais.
Um dia, também eles desapareceram.
E ainda bem.
Foi então que chegou, vindos de fora,
outro casal, com dois filhos, muito mais velhos do que eu. Por isso, não me
lembro do nome deles. Dizia-se que vinham lá dos lados de Coimbra. De Poiares.
De facto o falar era muito diferente do
nosso. Soava cantado, agradável de se ouvir.
Eram azeiteiros. Viviam do suor duma
mula, preta que tinham.
Todos os dias, ainda madrugada, lá
estavam todos à volta do animal, num cerimonial complicado a que, depois, com o
passar do tempo, tive acesso, e me regalava de ver.
A alimária alojava-se num compartimento,
demarcado só por toros de madeira,ao canto da loja ampla do rés-do-chão, cheio
de palha e tojo de mato, como cama, e era o centro, prioritário, de todas as
atenções e cuidados da família.
Tornou-se habitual, a qualquer hora da
noite, ouvirmos, através das frestas ralas
do sobrado comum às duas casas, a voz rouca do tabaco, do sr.
Azevedo,assim se chamava, a perguntar à
mulher se tinha deixado de comer à burra...
-
ó
home, só agora é que te lembras?...por ti, o bicho já tinha morrido de sede e
fome...- era sempre a resposta imediata, em tom zangado, da Miquinhas.
Depois, seguia-se o silêncio
da madrugada entrecortado pelo ressonar cavernoso, certamente, do marido
rezengão.
Não por muito tempo. Por
volta das quatro e meia, cinco horas, ainda noite escura, começava a carrega da
burra.
Sabía-mo-lo, devido à série de zurros que a burra soltava, nunca
soube se de gáudio se de revolta.
Talvez, fosse a reclamar o fardo
de palha seca que lhe era servido de pequeno almoço.
Primeiro, era uma manta de couro que estendiam
sobre o dorso do animal, da cabeça ao rabo.
Nela, havia lugar para tudo. Em poucos
minutos, erguia-se nela um alto bazar, em cascatas, uma pirâmide, recheado de
tudo quanto iria ser vendido, durante o dia, ao longo do emaranhado de caminhos
que os levavam aos lugarejos, das freguezias em redor.
Eram os dois almudes bojudos, em zinco
reluzente, de cada lado da barriga, cheios de azeite, com uma torneira de
cobre, cada um.
Vários mais pequenos de vinagre e
petróleo, medidas de vários tamanhos, uma balança.
Em dois baús de madeira engrecida, ao
comprido, presos com correias grossas de couro gordurento e cravos de latão,
iam os paus de sabão azul, esfregões e até vassourinhas de piassaba, enfim,
toda a complicada drogaria que recheia a dispensa das cozinhas.
Uma vez pronta e arreada, lá seguiam os
três: o pai, de boné de couro preto muito roçado, na cabeça, o cigarro já
fumegar, e uma bolsa de couro com os trocos, a tiracolo, e a burra,
carregadinha que nem uma jumenta, atrelada ao rapazote e a corneta, lá partiam,
portão fora, para a volta do costume.
À chuva ou ao frio. Só regressavam pela
tardinha ou noite escura, conforme fosse verão ou inverno.
Vinham quase sempre pelo caminho do
Eirado. Ou era a burra que relinchava, ali ao pé da casa das milagras, ou era o
rapaz que dava uma cornetada. Como que a avisar a Mãe e a irmã de que podiam ir
pondo a mesa para a ceia. Estavam mesmo a chegar.